Para especialistas, impacto das I.A. dependerá de programas de alfabetização digital

por João Cândido de Oliveira Santos | Revisão: Ricardo Marques — publicado 03/08/2023 09h40, última modificação 13/12/2023 10h45
Estima-se que, nos próximos sete anos, a Inteligência Artificial afetará direta e indiretamente 23% da população economicamente ativa do mundo.
Para especialistas, impacto das I.A. dependerá de programas de alfabetização digital

As transformações no mercado de trabalho decorrentes das Inteligências Artificiais foram tema da audiência pública promovida pela Câmara Municipal de Curitiba. (Foto: Carlos Costa/CMC)

Os reflexos da Inteligência Artificial (I.A.) na educação e na empregabilidade foram discutidos na Câmara Municipal de Curitiba durante uma audiência pública promovida nesta quarta-feira (2). A iniciativa do evento foi dos vereadores Herivelto Oliveira (Cidadania) e Amália Tortato (Novo), respectivamente presidente e vice-presidente da Frente Parlamentar da Ciência, Tecnologia e Inovação, e do vereador Sidnei Toaldo (Patriota), também integrante da Frente. 

A atividade foi realizada em parceria com o Conselho Municipal de Ciência, Tecnologia e Inovação de Curitiba, que conta com a atuação de diversas instituições privadas e públicas, e onde a Câmara Municipal de Curitiba é representada pelos vereadores Pier Petruzziello (PP) e Serginho do Posto (União).

Assista a audiência no canal da Câmara no Youtube.

Veja as imagens do evento no Flickr da Câmara.

Herivelto presidiu a audiência que teve a mesa composta pelas seguintes autoridades e convidados: Amália Tortato e Sidnei Toaldo, vereadores; Dario Paixão, presidente da Agência Curitiba de Desenvolvimento e Inovação e professor da UFPR; Ramiro Pissetti, pesquisador do Observatório Sistema Fiep; Rhodrigo Deda, advogado, coordenador geral de inovação da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção Paraná (OAB-PR); Daniel Filla, vice-presidente da Associação Comercial do Paraná (ACP); Márcia Krama, presidente do Conselho Municipal de Ciência, Tecnologia e Inovação (CMCTI); Kristian Capeline, coordenador geral da Escola de Tecnologia da Universidade Positivo, do Centro de Pesquisa da U.P. e diretor de políticas educacionais da Associação das Empresas Brasileiras de Tecnologia da Informação do Paraná (Assespro-PR); e Luiz Pinheiro, coordenador da Escola de negócios da Universidade Positivo (BSUP) e “head” do laboratório de Inteligência Artificial & Negócios (AiLaBs). 

Também estiveram presentes: Frederico Lacerda e Claudio Pereira, diretores da Agência Curitiba, Rodrigo Schmidt, coordenador de Desenvolvimento Empresarial da Fecomércio PR, e os vereadores Indiara Barbosa (Novo), Pier Petruzziello (PP) e Mauro Bobato (Pode), além de servidores dos gabinetes dos vereadores Nori Seto (PP) e Professor Euler (MDB).

Saudações

No entendimento do vereador Herivelto Oliveira, o debate sobre o impacto das Inteligências Artificiais no mercado de trabalho se faz urgente. “É necessário que haja essa compreensão para que possamos desenvolver políticas públicas de empregabilidade”, disse ele. O vereador esclareceu que a realização da audiência pública foi resultado das conversas estabelecidas entre a Frente Parlamentar de Ciência, Tecnologia e Informação e os membros do Conselho Municipal de Tecnologia e Informação, em particular, os professores Kristian Capeline e Luiz Pinheiro, da Universidade Positivo.

“O interesse no tema se coloca na medida em que a sociedade ainda se questiona sobre os limites no uso das Inteligências artificias e me refiro também aos limites legais”, disse a vereadora Amália Tortato. Ela também ressaltou a importância da Câmara Municipal de Curitiba destacar essa discussão que, de acordo com ela, já não é mais um tema do futuro, e sim, do presente. Sidnei Toaldo, integrante da Frente Parlamentar e um dos proponentes da audiência, frisou a necessidade de entendimento sobre os benefícios que as I.A. podem trazer para a humanidade. “Mas pode ser que nem todas as consequências sejam positivas e, nesse sentido, devemos saber o que pensam os especialistas, para que eles tragam informações esclarecedoras”, disse Toaldo.

Requalificação de competências

Dario Paixão, presidente da Agência Curitiba de Desenvolvimento e Inovação e professor da UFPR, falou sobre empregabilidade e as competências para o futuro do trabalho. De acordo com ele, desde 2015 vivemos o período que os especialistas batizaram como “4ª Revolução Industrial” (ou Globalização 4.0), que se dá a partir da popularização dos smartphones e da definitiva incorporação da internet a praticamente todas as atividades de trabalho. “Na verdade”, esclareceu o presidente do Instituto Curitiba, “a discussão sobre as mudanças na área do trabalho não é nova. Nos anos 1990, por exemplo, estudiosos como Jeremy Rifkin, autor de ‘The end of work’ (1995), apontavam duas questões que se colocariam no futuro: massas desempregáveis e um alto número de profissionais qualificados enfrentando dificuldades para ocupação de vagas”.

Paixão também lembrou as palavras de Klaus Schwab, fundador e presidente do Fórum Econômico Mundial, para quem estávamos despreparados para o advento da Globalização 4.0. Para Paixão, a constatação de Schwab tem fundamento, quando se leva em consideração uma pesquisa feita pela empresa de consultoria PricewaterhouseCoopers (PwC) que revela que 74% dos profissionais entrevistados têm necessidade de renovar suas competências para manter ou aumentar sua empregabilidade. Com base nisso, Klaus enfatizou que as tecnologias estão obrigando as pessoas a serem mais polivalentes, sob o risco de serem excluídas do mercado.

“Estudo promovido em 2018 pelo Fórum Econômico Mundial, em parceria com a empresa de consultoria McKinsey & Company, aponta que até o ano de 2030, a automação afetará de 11% a 23% da população economicamente ativa. O mesmo estudo indica que o surgimento das Inteligências Artificiais irá proporcionar o surgimento de 100 milhões de vagas e oportunidades de emprego, mas, em contrapartida, estas mesmas tecnologias vão extinguir 700 milhões de vagas, criando um déficit de 600 milhões de vagas, isto é, 30% do potencial laboral do planeta”, informou Paixão. Tal situação, segundo ele, atingirá profissionais de todos os níveis hierárquicos, dos operários aos altos executivos.

“Todos sofrerão impactos diretos ou indiretos. Portanto, o Fórum Econômico Mundial propôs o conceito da ‘Cura’, que envolve a adoção, por parte dos profissionais, de competências cruzadas (competências em áreas diversas); competências superiores (competências em áreas diversas associadas à visão analítica e estratégica); requalificação (atualização de competências) e competências especialistas (visão generalista acompanhada por especializações em assuntos específicos). Ele ainda destacou a importância da alfabetização digital, considerando que as profissões na área de Tecnologia da Informação terão ainda mais relevância do que já têm. “É o que se percebe nesse estudo do Google for Startups, publicado no dia 31 de maio deste ano, que aponta uma defasagem de 530 mil profissionais no Brasil até 2025. Existe até o risco de um apagão das startups por falta de mão de obra qualificada”, concluiu Paixão.

Inevitável

A chamada Inteligência Artificial Generativa e seus impactos sobre a indústria criativa foram os temas abordados por Ramiro Pissetti, pesquisador do Observatório Sistema Fiep. Ele lembrou que, em abril de 2022, foi divulgada a primeira imagem gerada por uma Inteligência Artificial, isto é, uma imagem desenvolvida não por meio de softwares de design, mas por comandos de texto. “Foi a primeira imagem gerada por esta ferramenta que apresentou qualidade, resolução e gerou um resultado convincente do ponto de vista artístico. Um mês depois, o mesmo recurso foi utilizado para a elaboração da capa da revista Cosmopolitan”. Surge, então, segundo Ramiro, uma preocupação entre alguns setores profissionais das áreas de criação artística, quanto aos usos destas novas ferramentas e os reflexos que isso poderia gerar junto aos trabalhadores.

Em dezembro de 2022, lembrou ele, surgiu o Chat GPT, que bateu todos os recordes de adesão. “Em cinco dias, o ChatGPT já havia sido baixado por mais de um milhão de pessoas, número que a Netflix, por exemplo, só conseguiu alcançar em 3 anos e o Instagram, em 2”, informou Ramiro. As primeiras pesquisas na área, de acordo com ele, foram realizadas nos anos de 1950, mas só agora a ciência desenvolveu poder computacional para popularizar essas tecnologias e, desde o surgimento do ChatGPT, milhares de outros aplicativos focados em soluções com o emprego de inteligências artificias foram disponibilizados. “São ferramentas que desenvolvem textos, imagens, áudios, programas, buscadores, chatbots”, disse ele. Ramiro destacou que, no livro “Inevitável” (2019), o autor Kevin Kelly, fundador da Wired Magazine, listou a Inteligência Artificial como uma das 12 forças tecnológicas que mudarão o mundo e fez um paralelo entre o processo de eletrificação da sociedade no século XIX e a atual adoção das I.A., processo que Kelly denominou como ‘cognificação’.

“As Inteligências Artificiais”, explicou Ramiro, “agilizam processos que nossa memória humana não consegue realizar. E vão além, gerando, por exemplo, textos que simulam o estilo de um determinado escritor, ou imagens a partir de referências já existentes. Essas características estão entre as principais reclamações na atual greve dos roteiristas, que se verifica em Hollywood”. Ele mencionou a iniciativa da Finlândia que há sete anos oferece à população um curso gratuito de alfabetização em I. A. e concluiu mencionando que a nova tecnologia ganhou destaque no caderno Tendência Sistema Fiep 2023, com especial atenção para a Criatividade Sintética, que trata dos desdobramentos da I.A. generativa para áreas como design, fotografia e marketing.

Marco Legal

Rhodrigo Deda advogado e coordenador geral de inovação da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção Paraná (OAB-PR), iniciou sua fala esclarecendo que as I.A. estão passando por um momento de regulação em todo o mundo. De acordo com ele, a União Europeia aprovou, em 14 de junho deste ano, o primeiro esboço de um projeto que ainda está sendo trabalhado junto aos Estados que compõem o bloco e tem por fundamento a responsabilização e o compliance. Da mesma forma, os Estados Unidos, por meio de suas agências reguladoras, já desenvolveram um projeto de lei que está em trâmite no congresso americano. “No Brasil, o Marco Legal das Inteligências Artificiais (projeto de lei 2.338/2023) será legislado pela União (no que diz respeito à informática) e há discussões em andamento sobre se ele poderá ser regulado pelos estados de forma concorrente, no que diz respeito à inovação em tecnologia”, disse o advogado.

Deda explicou ainda que a estrutura do Marco Legal, de influência europeia, prevê direitos como o de ser informado quando um texto ou imagem foi gerado por meio de Inteligência artificial e o de contestar decisões tomadas com base na avaliação e nas previsões apresentadas por I.A., principalmente quando tal decisão gerar efeito jurídico. O texto do marco também tem acentuado enfoque nos riscos inerentes à implementação e ao uso das I.A. Por fim, deda indicou que o anteprojeto de lei propõe como medida para o fomento da inovação a adoção do ambiente regulatório experimental, conhecido como “Sandbox”, medida que ajudaria pequenas empresas que pretendem incorporar a nova tecnologia.

Daniel Filla, vice-presidente da Associação Comercial do Paraná (ACP), disse que elaborou, em companhia de Antoninho Caron, presidente do CIEE/PR, algumas questões que julgou pertinentes à discussão. Ele disse, de início, que a Inteligência Artificial deve estar sempre sob o comando dos humanos, mas é necessário entender como os organizadores das I.A. controlam as informações e os processos organizacionais. “Eles estão interessados em propagar a tecnologia em prol da liberdade ou da manipulação?”, perguntou Filla. Para ele, é essencial entender de que modo as redes sociais se valerão das I.A. para influenciar os indivíduos. No entendimento do vice-presidente da ACP, a I.A. precisa ser uma alternativa que aproxime as empresas dos consumidores e permita a evolução dos seres humanos, promovendo sabedoria e valores éticos e morais.

Impactos em Curitiba

Márcia Krama, gerente do Setor Socioeconômico do IPPUC e presidente do Conselho Municipal de Ciência, tecnologia e Inovação (CMCTI), tratou dos desafios da I.A. no mercado formal de trabalho de Curitiba. De acordo com ela, entre os objetos de estudo do IPPUC está a empregabilidade, o que gera a necessidade de se entender de que modo esses avanços tecnológicos vão afetar o mercado de trabalho. “Estou me referindo ao mercado formal, que tem por base o cadastro geral de pessoas empregadas (lembrando que uma pessoa pode ter mais de um vínculo empregatício)”, disse Krama. Nas atividades administrativas (as que mais empregam em Curitiba), 16 mil vínculos podem desaparecer e no comércio varejista (segunda atividade com mais empregados). A perda de empregos pode chegar a 15,83% de um total de 143.354 trabalhadores. “Só entre os operadores de caixa, são 12 mil profissionais que podem perder suas ocupações”, informou ela. Para Márcia Krama, é necessário o investimento em políticas de requalificação visando às categorias profissionais que poderão sofrer impactos mais significativos com as novas tecnologias.

I.A. na educação

Kristian Capeline, coordenador geral da Escola de Tecnologia da Universidade Positivo, do Centro de Pesquisa da U.P. e diretor de políticas educacionais da Associação das Empresas Brasileiras de Tecnologia da Informação do Paraná (Assespro-PR), entende que o ponto mais importante a ser discutido é a empregabilidade e falou sobre a questão das I.A. no mercado da Tecnologia da Informação. De acordo com ele, já há demissões neste setor em razão das I.A., mas, ao mesmo tempo, há uma remodelagem das tarefas dos funcionários e o surgimento de novas vagas. “A realidade faz com que as pessoas se reinventem e se readaptem às novas condições, e é isso que a gente está vendo”, afirmou. Kapeline explicou que o emprego da I.A. pelas empresas de Tecnologia da Informação tem sido majoritário na base da pirâmide (serviços operacionais). Os serviços intermediários, conhecidos como táticos, também estão se valendo das I.A., mas em uma escala menor e, entre os cargos estratégicos, que ocupam o topo da pirâmide, o uso ainda é restrito.

“Efetivamente as empresas de Tecnologia de Informação se utilizam dos seguintes serviços de I.A.: Service Desk automatizado; resumo de livros e traduções; explicações de conceitos, códigos e arquiteturas; documentação de códigos, inclusive com geração de diagramas; codificação; identificação de erros e correções em códigos; Refactor, para deixar códigos mais otimizados ou mais fáceis de serem entendidos e para criação de casos de testes; gestão de pessoas e clima organizacional; auxílio em tomadas de decisões e criação automática de programas baseados em casos de testes; entre outros usos”. O professor destacou também opiniões positivas de profissionais da área sobre a nova tecnologia. “Se não adotar a Inteligência Artificial, a empresa de Tecnologia de Informação não vai ter competitividade”, finalizou. 

Luiz Pinheiro, coordenador da Escola de negócios da Universidade Positivo (BSUP) e “head” do laboratório de Inteligência Artificial & Negócios (AiLaBs), parabenizou a Câmara pela iniciativa do debate. Segundo ele, já é possível, desde que se iniciou a popularização das I.A., verificar o perfil dos alunos e dos professores que utilizam a tecnologia. No entendimento do professor, a I.A. possibilita não só complementar a aula, como também ir além do conteúdo. “Tivemos a liberdade na Universidade Positivo de experimentar: a I.A. nos proporcionou sugestões de melhorias em cursos, procedimentos e rotinas. Na prática, ela está funcionando como 'coprofessora' e os alunos estão utilizando diariamente, tanto os de graduação quanto os de pós-graduação”. Ele lembrou ainda que, em novembro, o Conselho Municipal vai promover um encontro sobre o tema.

Perguntas

Em resposta ao vereador Herivelto, que indagou sobre a confiabilidade das I.A., o professor Kristian Capeline confirmou que, de fato, as Inteligências Artificiais, às vezes, inventam dados, mas que a taxa de incidência dessas situações é baixa. Para ele, as I.A. não são 100% confiáveis, mas é necessário que sejam usadas de forma auxiliar, sempre com o complemento de outras fontes, principalmente no que tange à tomada de decisões.

Ao ser perguntado sobre a democratização das I.A. junto aos trabalhadores da base, o professor Luiz Pinheiro respondeu que o Conselho Municipal já promoveu experiências de introdução da I.A. em escolas da rede e que ele teve a felicidade de ver professores de mais idade atuantes na periferia se valendo da tecnologia para ensinar. Capeline complementou a resposta, informando que essa experiência atingiu 3 mil profissionais.

Outra dúvida levantada foi referente à publicação de textos gerados por meio de I.A.. Para o advogado Rhodrigo Deda, as informações (textos e imagens) produzidos pelas I.A. nascem de uma relação dialógica entre o operador humano e a I.A., portanto a responsabilidade pelo uso dessas informações é do operador. “Entendo que sempre deve haver a indicação de que determinada informação foi gerada com esta tecnologia”, defendeu o advogado.

Além dos vereadores proponentes da audiência, a Frente Parlamentar da Ciência, Tecnologia e Inovação é composta pelos vereadores: Bruno Pessuti (Pode), Ezequias Barros (PMB), Hernani (PSB), Nori Seto (PP), Pastor Marciano Alves (Solidariedade), Pier Petruzziello (PP), Professor Euler (MDB), e Sargento Tânia Guerreiro (União).