Crise hídrica III: a história do abastecimento de água em Curitiba

por Fernanda Foggiato — publicado 05/11/2020 14h05, última modificação 06/11/2020 10h54
Hoje próxima à universalização do saneamento básico, a capital começou a distribuir água aos domicílios da população há pouco mais de 100 anos.
Crise hídrica III: a história do abastecimento de água em Curitiba

Registros de secas na imprensa, entre o final do século 19 e o começo do século 20, cobravam melhorias no sistema de abastecimento. (Montagem: Leticia Bostelmann/CMC)

Em junho passado, estudo divulgado pela Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental (Abes) apontou Curitiba como a melhor capital do Ranking do Saneamento 2020. Próxima a atingir a universalização do saneamento básico, a cidade tem 100% da população urbana atendida com água tratada e 96% com a coleta de esgoto (sendo que 100% do esgoto coletado é tratado).

Mas foi há pouco mais de 100 anos, na primeira década do século 20, que a água começou a chegar às torneiras das residências de Curitiba, a partir dos Mananciais da Serra. Foi no mesmo ano, em 1908, que a cidade inaugurou a primeira rede de tratamento de esgoto. Água tratada, só a partir de 1945.

Portanto, o Nossa Memória não tem como abordar a emergência hídrica atravessada em 2020, tema da primeira parte do especial da Câmara Municipal de Curitiba (CMC), e como a população enfrentou outras estiagens severas, nos últimos 130 anos, mote da segunda reportagem, sem falar da história das redes de água e de saneamento em Curitiba. Entre o final do século 19 e as primeiras décadas do século 20, registros de períodos de estiagem em jornais locais muitas vezes mesclavam-se com apelos ao poder público por melhorias no acesso ao abastecimento, atrelando-o à saúde pública.

 

 

No Rio de Janeiro, capital do Império, a construção da rede de abastecimento em domicílio começou em 1876. Dois anos depois, 8 mil edifícios eram atendidos. Em 1881, os moradores da cidade de São Paulo, por exemplo, também começaram a ver jorrar água nas torneiras de casa. Em 1882, 113 residências eram abastecidas. Em 1888, eram mais de 5 mil os domicílios contemplados.

Em Curitiba, a construção do bebedouro da rua Fechada, atual Largo da Ordem, em 1853, foi considerada um dos marcos do ainda precário sistema de abastecimento. Antes disso, existiam poucas fontes, bicas e olhos d´água na cidade, cuja ordenação era uma das preocupações da Câmara Municipal.

Nos primeiros provimentos municipais, em 1721, o ouvidor Raphael Pires Pardinho determinou que as águas do rio Ivo, região onde estava a maior concentração de moradores, seriam para beber. As do rio Belém, por sua vez, receberiam “as águas servidas”. Em 1784, a Câmara determinou a construção de uma proteção de pedras na “fonte fronteira à Matriz”. Era proibido lavar roupas e outros objetos, assim como dar de beber a animais, nas fontes destinadas ao abastecimento público.

Outro registro histórico anterior ao bebedouro da rua Fechada é de 1845, quando a Câmara Municipal determinou que “se puzecem em aproveitamento algumas aguadas q’existem e q’ servem para uso comum dos habitantes, por falta de beneficio” e se construíssem três fontes, “duas no sul da Carioca da Cruz, em duas nassentes que ali existem, e que são permanentes, e uma além da Ponte do Ivo”. A medida, justificaram os vereadores, atendia à “falta de água q’se nota nesta cidade, especialmente em ocazião das seccas”.


Chafariz público
Discutido pela Câmara Municipal desde 1849, o primeiro chafariz público, localizado na praça Zacarias, foi inaugurado em 8 de setembro de 1871, paralelamente às festividades do Dia de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais, padroeira de Curitiba. A obra, do engenheiro Antônio Rebouças Filho, é considerada o primeiro encanamento da capital. Ligava a então praça da Misericórdia (atual praça Rui Barbosa) ao Largo da Ponte (atual praça Zacarias).

O chafariz facilitou a atividade dos chamados pipeiros ou aguadeiros, que vendiam as pipas d´água em suas carroças, de porta em porta, além de democratizar o abastecimento à população local. Naquela época, a cidade tinha cerca de 12 mil habitantes. O projeto compreendeu o uso de canos de chumbo, vindos do Rio de Janeiro, no caminho entre a fonte do Campo da Cruz das Almas (depois chamado de praça da Misericórdia) e o Largo da Ponte.

A água era abundante e limpa, já que vinha de um local até então de difícil acesso, distante do centro. Para represá-la, foi construída uma caixa de cimento, com capacidade de 80 litros. No subsolo do chafariz havia um depósito que, quando cheio, transbordava para o rio Ivo.

No dia seguinte à inauguração, por voltas das 10 horas daquela data “já memorável por ser o da festa de nossa padroeira”, o jornal “O Dezenove de Dezembro” noticiou que a solenidade reuniu autoridades civis e militares, como o presidente da Província do Paraná, Venâncio José de Oliveira Lisboa; o presidente da Câmara Municipal, Tertuliano Teixeira de Freitas; e o engenheiro Rebouças. Entre discursos, vivas ao imperador e a benção do vigário às águas que passaram a jorrar das torneiras públicas, importadas da Europa, a imprensa destacou o marco de “prosperidade para a capital”.

Segundo o relatório do presidente da província de 1872, aquela era a obra mais útil até então, que atendia a “uma necessidade imperiosa desta capital, fazendo aproveitar a sua melhor água”. O sistema moderno, nas décadas seguintes, já passou a receber críticas, conforme registros na imprensa e nos relatórios provinciais. Em novembro de 1885, por exemplo, a “Gazeta Paranaense” avaliou que o abastecimento de pipeiros e cervejeiros deveria ser feito “em lugares mais distantes, deixando que a água do chafariz só seja tirada para serviço doméstico, para o qual já é insuficiente”.

Concorrências frustradas
Em 1877, o governo provincial determinou ao engenheiro Gottleb Wieland a realização de estudos para um sistema de abastecimento, com a justificativa que a capital crescia e sofria com a escassez nos períodos de secas. A proposta era a canalização do rio Belém, com a construção de um chafariz no Largo da Matriz e a implantação de torneiras públicas, mas as obras não foram realizadas. Em 1879, foi contratado pelo governo provincial o engenheiro Joaquim Rodrigues Antunes, só que mais uma vez o projeto não saiu do papel.

Em 1885, o governador da Província delegou novamente ao Município a solução do problema de abastecimento de água e do saneamento básico em Curitiba. Em abril do mesmo ano, após receber e avaliar propostas, a Câmara Municipal decidiu contratar o engenheiro Fernando de Mattos, prevendo a captação no rio Barigui, “tendo sido reconhecida [sua água] como excellente tanto em qualidade como em quantidade”.

A água seria filtrada e o concessionário teria exclusividade para a prestação do serviço pelo prazo de 50 anos. A cidade ganharia mais quatro chafarizes, além de duas torneiras públicas. A água encanada, nas residências, seria paga. Para o combate a incêndios, irrigação das ruas e prédios municipais, gratuita. “É tempo de trocar o aguadeiro pela torneira”, indicou parecer da comissão da Assembleia Provincial (como a Assembleia Legislativa do Paraná era chamada no Brasil Império) que aprovou, no final de novembro de 1886, com alterações em algumas cláusulas, o documento firmado entre a Câmara e o engenheiro Mattos.

O contrato, no entanto, foi questionado em plenário – a Assembleia Provincial, em sessão ordinária no dia 16 de dezembro de 1886, dentre outros pontos contestou a ausência de projeto para os chafarizes; o capital e a capacidade da empresa para executar as obras; e o prazo para a conclusão das mesmas. Tampouco recebeu a sanção do presidente da Província.

Em fevereiro de 1887, a Câmara Municipal relançou o edital para o abastecimento de água e a construção da rede de esgoto. As propostas foram abertas no ano seguinte e chegou a ser constituída uma comissão para avaliá-las, que chegou a dezembro sem um parecer final.

Em fevereiro de 1888, um ano antes de entrar em operação o primeiro posto pluviométrico de Curitiba, o jornal “A República” reclamava do estado das ruas: “Em tempo de secca, são uma poeira que suffóca e céga; no tempo de chuva, formam um lodaçal”. O apelo, no entanto, não era pelo sistema de abastecimento, e sim que a Câmara Municipal investisse no calçamento das vias, “até mesmo para adorno da cidade”, em vez de questões apontadas como inúteis, como a “abertura de novas ruas, ainda desnecessárias”.

Em janeiro de 1895, “A República” alertou ao risco das águas estagnadas, cobrando da Câmara e de outros órgãos a regulamentação da abertura dos poços domésticos e melhorias no abastecimento. Segundo o artigo, eles quase sempre ficavam muito próximos às fossas, existindo o perigo de infiltração. Em setembro do mesmo ano, “A Tribuna” propôs que o calçamento das ruas fosse realizado mais tarde, após as obras de canalização, esse sim um “melhoramento urgente e imprescindível”.

Curitiba teve, no final do século 19, outras “concurrências” para tentar resolver o problema do abastecimento, que também não foram levadas adiante. O edital autorizado pela Câmara Municipal e publicado pelo prefeito Jorge Hermano Meyer, em julho de 1896, previa a captação no “Bariguy, na Serra ou outros mananciaes”, desde que a qualidade da água fosse comprovada em análise química.

Em 14 de setembro, comissão da Câmara recomendou a adoção da proposta de Casimiro Mottet e sócios, que propunha canalizar água da Serra do Mar, “incomparavelmente superior à do Bariguy”. Também foi considerada melhor pelos camaristas por indicar aos “menos favorecidos da fortuna” a cobrança de metade da taxa que seria aplicada, pela água encanada a domicílio, aos mais abastados.

O contrato chegou a ser enviado para análise do governador da Província, mas o plenário da Câmara Municipal, em sessão dia 3 de outubro de 1896, acatou parecer de comissão especial pela anulação da concorrência. Para os vereadores, era irrefutável que as garantias de juros haviam sido concedidas fora das condições determinadas por lei. Apesar disso, a questão continuou a se desenrolar.

Em 21 de setembro de 1899, a Câmara aprovou parecer definitivo pela caducidade do contrato e a publicação de novo edital. Assinada no dia seguinte pelo prefeito Cícero Gonçalves Marques, a concorrência previa a captação de água nos rios Campinha e Queimados, em Deodoro (atual município de Piraquara). Como os outros projetos, também não foi realizado – sequer recebeu propostas, apesar de o prazo ter sido ampliado até o final de fevereiro de 1900.

No dia 30 de julho daquele ano, cinco meses após a concorrência frustrada, o “Diário da Tarde” apontou como principal problema da capital o abastecimento de água precário, feito por meio de poços nos quintais, onde também ficavam as fossas, com “perigo à saúde pública”, ou dos barris vendidos pelos pipeiros – a partir de “fontes mais ou menos impuras”. A publicação também alertava à importância do abastecimento para “outras necessidades”, como a “higyene do corpo” e das habitações, a limpeza pública, o combate a incêndios, a irrigação e o desenvolvimento da indústria.

Século 20
Em 3 de abril de 1903, o governador do Estado do Paraná, Francisco Xavier da Silva, sancionou a lei 506, de autoria do presidente do Congresso Legislativo do Estado do Paraná, Vicente Machado. Ela autorizava o governo a “entrar em accordo” com a Câmara Municipal de Curitiba e a contratar, “pelo meio que julgar mais conveniente”, o serviço de abastecimento de água e de esgoto. A proposta era que as obras, depois de amortizados o capital e os juros despendidos pelo Estado, fossem entregues ao Município.

O contrato entre o governo e a Companhia de Melhoramentos de São Paulo, que passou a operar aqui como Empreza Paulista de Melhoramentos no Paraná, foi firmado em 1904, já com Vicente Machado na presidência do Estado. As obras começaram em 1905 e contemplaram a desapropriação de terrenos da região das represas do Sistema do Carvalho, em Piraquara.

Ainda precisando de ajustes, o Reservatório do Alto São Francisco começou a operar no dia 18 de agosto de 1908, trazendo a Curitiba água da Serra do Mar, a partir das Represas do Carvalho. Segundo o jornal “A Notícia”, os testes não vinham sendo bem-sucedidos: a caixa d´água (reservatório) não enchia porque vários canos estavam partidos, o que chegou a causar inundações em ruas da capital.

À imprensa, engenheiro da empresa comunicou que, substituídos 41 canos, após 37 dias de “experiências”, o Reservatório do Alto São Francisco havia recebido as águas das Represas do Carvalho, na noite daquele 18 de agosto. Segundo ele, o rompimento de canos eram fruto de “actos de vandalismo”. A solenidade oficial de inauguração foi realizada dia 24 de agosto, com à degustação da água trazida dos Mananciais da Serra.

As “Instalações Bacterianas”, primeiro sistema de coleta e tratamento de esgotos, com sede na rua Engenheiro Rebouças, passaram a operar em dezembro de 1908. No mesmo mês, em mensagem à Câmara Municipal, o prefeito Joaquim Pereira de Macedo apontou os “estragos consideráveis produzidos em todas as ruas e praças” com a construção da rede de água e esgotos, frente aos “limitados recursos” municipais. Diante disso, conseguiu a autorização dos vereadores para processar a Empreza Paulista de Melhoramentos no Paraná, pedindo indenização por danos ao patrimônio público.

As ligações domiciliares começaram a ser solicitadas à empresa sanitária em março de 1909. Em mensagem à Assembleia em fevereiro de 1910, na abertura dos trabalhos legislativos, o governador do Paraná, Francisco Xavier da Silva, indicou que 312 residências de Curitiba, até o dia 31 de dezembro de 1909, “já tinham as instalações apropriadas para o serviço de águas e esgoto”.

Na segunda década do século 20, a água encanada não era uma realidade para a maior parte dos cerca de 50 mil moradores de Curitiba, que ainda dependiam das 28 torneiras públicas, instaladas em pontos estratégicos da capital, além dos chafarizes e poços. Na edição de 27 de novembro de 1911, por exemplo, o jornal “A República” relatou que moradores da rua Coronel Dulcídio, entre as ruas Mato Grosso e Silva Jardim, reclamavam sofrer há um mês com problemas no abastecimento, “sendo servidos uma vez ou outra somente”, à noite.

Ampliação da rede
Foi em 1928 que a cidade ganhou seu segundo reservatório, no Batel, como parte do projeto de ampliação do sistema de abastecimento. Em 1945, já com uma população de 240 mil moradores, foi inaugurada a primeira estação de tratamento de água do Paraná, no bairro Tarumã, que operou até 2004 e hoje sedia o Museu do Saneamento.

Em 1964, quando foi fundada a Companhia de Saneamento do Paraná (Sanepar), responsável pelos serviços de saneamento básico em 345 das 399 cidades paranaenses, Curitiba ainda tinha cerca de 100 mil pessoas sem abastecimento de água potável e 160 mil sem acesso à rede de esgoto. O sistema passou por novos avanços entre as décadas de 1970 e 1980, como as inaugurações da Represa do Cayuguava (ou Caiguava), mais conhecida como Reservatório Piraquara I, em 1979, e da primeira fase das obras do Sistema Passaúna, em 1986.

Na semana passada, o Paraná teve a situação de emergência hídrica prorrogada por mais 180 dias, até maio de 2021. A Sanepar pretende concluir até dezembro deste ano as obras da Barragem do Miringuava, em São José dos Pinhais, incrementando a capacidade de produção de água para a capital e região metropolitana. Caso o nível do Sistema de Abastecimento de Água Integrado de Curitiba (SAIC), caia para 25%, a empresa não descarta um rodízio mais rígido, com cortes no fornecimento por 48 horas. Em 5 de novembro, mesmo após as chuvas registradas na última semana, o nível era de 27,73%.

** Confira aqui as referências bibliográficas da terceira parte da reportagem especial.