Audiência pública na CMC debate deficiências do sistema penal brasileiro

por Pedritta Marihá Garcia — publicado 01/04/2021 22h29, última modificação 01/04/2021 22h29
Especialistas e entidades ligadas à defesa dos direitos dos apenados defenderam medidas alternativas para o cumprimento de penas e condições dignas nas prisões.
Audiência pública na CMC debate deficiências do sistema penal brasileiro

O debate foi coordenado pelo gabinete do vereador Renato Freitas e realizado no dia 26 de março. (Foto: Carlos Costa/CMC)

“O sistema penitenciário é um filho feio, que ninguém quer embalar. Ninguém quer se responsabilizar, quer colocar a mão nesse problema, porque é seríssimo. As pessoas não conhecem a penitenciária. Nós conhecemos. Mas a sociedade como um todo, conhece shopping center, carro [com] ar condicionado. [As pessoas] proferem o jargão horroroso e preconceituoso que ‘bandido bom é bandido morto’. Nem elas querem novas penitenciárias ou melhores penitenciárias, elas preferem que se matem os bandidos mesmo.” A análise é do ex-diretor-geral da Secretaria de Estado da Segurança Pública, Marco Berberi, durante a audiência pública realizada na Câmara Municipal de Curitiba (CMC) no dia 26 de março.

Proposto por Renato Freitas (PT) e transmitido pelas redes sociais do Legislativo, o debate “Encarceramento em massa: impactos de uma política de segurança pública” reuniu não só Berberi, que também é mestre em Direito e procurador do Estado, mas representantes do Poder Judiciário e de entidades e movimentos sociais ligados à defesa dos direitos dos apenados e egressos do sistema penitenciário brasileiro. Conforme o vereador, “o super encarceramento, o coronavírus dentro das prisões, a ausência de visitas, a restrição dos direitos dos presos” foram alguns dos fatores que o levaram a promover a audiência pública.

“Somos a terceira maior população carcerária no mundo. Entre as 10 maiores, somos o único país que continua apostando as fichas no encarceramento e a única que tem taxas que só aumentam, enquanto outros países, como os Estados Unidos, vêm aos poucos repensando a política de segurança pública, a partir do prisma do desencarceramento. [No EUA], as taxas são decrescentes há anos”, disse Renato Freitas. Ele também acrescentou que são recorrentes e fundamentadas as reivindicações de familiares e entidades ligadas aos direitos humanos “para que haja uma fiscalização do cumprimento das penas das pessoas, devido a muitas denúncias de torturas e de displicência estatal em relação ao coronavírus, e a pena acaba se estendendo”.

Representante do Movimento Preso Tem Família, Nayara Paola denunciou casos de tortura no sistema penitenciário do estado. “Dentro dos presídios acontecem muitas torturas, psicológica e física. Por causa da pandemia, como as famílias não têm acesso ao interior dos presídios, e os presos têm sofrido muita opressão. Entramos na Justiça, demos queixa. Como vamos ressocializar uma pessoa que sofre tortura?”, indagou, para depois sugerir que os policiais penais usem câmeras de monitoramento em seus uniformes, “para que tenhamos noção do que acontece com os apenados”.

“Antes a gente lutava por causa da covid-19 lá dentro, porque não sabíamos o que estava acontecendo. Conforme fomos lutando e os presos foram saindo com alvará [de soltura], foram passando para nós, familiares, o que realmente estava acontecendo dentro da cadeia”, relatou Isabelle Cristine, também do Movimento Preso Tem Família, que exibiu fotos que mostram presos feridos por tiros de borracha e contar que tem cartas denunciatórias “do que realmente acontece dentro do sistema penitenciário”.

Ao alertar que “o sistema hoje é uma panela de pressão, prestes a explodir” onde os apenados vivem em condições indignas, sem material de higiene pessoal e com pouca alimentação, Isabelle Cristine defendeu que as famílias não querem regalias para aqueles que estão encarcerados ou querem a redução de suas penas, “a gente quer que eles sejam como pessoas que pagam suas penas da forma mais digna que têm que ser pagas”.

A falta de investimentos no sistema prisional também é realidade em outros estados, como em Minas Gerais, conforme a presidente da Associação de Amigos e Familiares de Pessoas em Privação de Liberdade e articuladora da Agenda Nacional e da Frente Mineira pelo Desencarceramento, Maria Teresa. “O preso não é condenado a ficar sem saúde, não é condenado a receber essa alimentação de péssima qualidade que é servida no país inteiro. Muito menos é condenado a ficar três, quatro dias dentro de uma unidade prisional sem água”, observou.

Lei de execução penal
Na avaliação de Maria Teresa, para que o cárcere seja seguro para presos e familiares, a Lei de Execução Penal (lei federal 7.210/1984) precisa ser cumprida. “Não há interesse [do poder público, na diminuição do encarceramento]. Quando aparece alguém que realmente compra essa briga, passa pouco tempo o procurador transfere esse alguém de local. O defensor vai para outra vara. Um juiz de execução penal, se resolve cumprir a lei, é convidado a se aposentar. A gente tem visto essas coisas acontecerem e a gente fica sem saber até onde a juventude negra [vai continuar] toda no cárcere. Você quer conhecer um navio negreiro é só ir numa cadeia. É todo mundo preto. Com exceção aí no sul, aqui para o nosso lado é isso”, frisou.

“O Judiciário tem que ser cobrado para que se posicione sobre esta realidade”, posicionou-se Ana Carolina Bartolamei, que é juíza de execução penal do TJ-PR (Tribunal de Justiça do Estado do Paraná). Na opinião da magistrada, o próprio Poder Judiciário não se responsabiliza pelo super encarceramento, mas, ao colocar 200 pessoas em um lugar onde só cabem 100, está “chancelando a ilegalidade”, sendo “violador” e “criminoso”. “Se você, como estado garantidor de direitos e garantias fundamentais, sabe que o Executivo está descumprindo tudo isso e continua insistindo em mandar pessoas, em números exagerados, para lugares onde todos os seus direitos são violados, você é responsável também [pelo super encarceramento]”.

Enquanto juíza de execução penal, Ana Carolina diz que procura atuar na direção oposta de sua análise: para tirar as pessoas do sistema penitenciário e para garantir que quem fica no cárcere não tenha seus direitos violados. “O juiz de execução que não vai no cárcere não é um juiz de execução, é um juiz de nada. O juiz de execução penal precisa saber que o seu jurisdicionado é o preso, não é o estado. Você não está ali para proteger nem o policial nem o agente penitenciário. Sua função é tutelar para que todas as garantias de direitos para aquele preso, aquela presa, estejam lá para eles”, complementou.

Encarceramento não é a solução
Para Maria Teresa, da Associação de Amigos e Familiares de Pessoas em Privação de Liberdade, o poder público precisa, junto com a sociedade civil organizar, buscar maneiras para responsabilizar as pessoas que estão em desacordo com a lei, sem que elas tenham que cumprir penas privativas de liberdade. A mudança desta realidade, conforme pontuou o ex-diretor-geral da SESP, Marco Berberi, passaria pela polícia, que deveria atuar de forma preventiva e não punitiva e ser mais próxima do cidadão.

“Minha proposta sempre vai ser de proximidade. A polícia não pode ver o cidadão [com estereótipo de criminoso] como um inimigo. Vou dar um exemplo, meu filho, que anda com calça rasgada, cabelo colorido, camisa pichada, foi entrar no shopping e não entrou? Por que ele não entrou? Estereótipo. Se você olha para a fila das pessoas que vão visitar os presos, é uma fila de iguais. São os três ‘P’ que a gente fala o tempo na academia, na rua: o preto, o pobre, o periférico. O mais do mesmo”, argumentou Berberi.

O ex-diretor-geral da Secretaria de Segurança Pública do PR também observou que o problema do encarceramento no Brasil vai além das penitenciárias, já que muitas delegacias funcionam como prisões, deveriam ser interditadas, mas não há onde colocar os apenados. “É um universo pior ainda. [Nas delegacias] não tem nem banho de sol. A visita na delegacia é impossível, o familiar não consegue visitar. Não tem como atender as famílias que vão lá. Agentes penitenciários é quem têm preparação para isso. [Nas delegacias] quem atende é o escrivão, o investigador, que quebram um galho para fazer uma carceragem.”

Maurício Dieter, doutor em Criminologia e Direito Penal e professor da Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo), concluiu que o encarceramento em massa, “sem dúvida é a face mais visível do giro punitivo”. Para ele, quando maior a prisão, mais segredada, maior é o fracasso na recuperação de apenados. Por isso, a alternativa proposta é que o cumprimento de penas privativas de liberdade seja feito “sem o estigma da prisão”. Como exemplo, o especialista apresentou um modelo adotado na Bélgica, no qual as penas são cumpridas em pequenas casas, com quatro a cinco condenados, sem vigilância armada ou uso de uniformes.  

Outra alternativa levantada por Dieter, para a diminuição do número de encarcerados, é a ampliação das políticas de segurança pública do Poder Executivo municipal, “que normalmente são negligenciadas, mas tem função importante”. Na sua visão, as guardas municipais têm que prender menos e estarem mais capacitadas para mediar conflitos, usando menos violência. Para isso, ele orientou que as próprias câmaras municipais orientem as prefeituras e cumprirem determinação do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) para que os guardas civis gravem as abordagens realizadas pelo policiamento ostensivo. De que forma? Através de câmeras de monitoramento afixadas nos uniformes.

Por fim, o professor de Direito da USP, também recomendou a desmilitarização das GMs “do ponto de vista estético e do repertório, do instrumental que ela usa”. “E a única forma de fazer isso é aumentando o controle civil das guardas municipais”, finalizou. Também participou da audiência pública a Frente Estadual pelo Desencarceramento no PR, representado por Josiane de Miranda.