Sobre heróis e tumbas: o Cemitério Municipal

por João Cândido Martins — publicado 14/06/2013 08h00, última modificação 27/05/2022 16h54
Sobre heróis e tumbas: o Cemitério Municipal

Cemitério Municipal teve visita guiada pela pesquisadora Clarissa Grassi, que destacou o potencial turístico do local. (Foto - Anderson Tozato)

Há quatro anos, a Assessoria de Comunicação da Câmara publica textos sobre temas relativos à história de Curitiba. Em 15 de julho de 2010, foi publicada matéria da jornalista Michelle Stival, funcionária do setor, sobre a relação da Câmara Municipal com a construção e inauguração do Cemitério São Francisco de Paula, também conhecido como Cemitério Municipal. No mesmo texto, a jornalista abordou outros cemitérios da cidade, bem como a evolução das leis municipais que passaram a regulamentar os serviços funerários. Recentemente, o rápido esgotamento das vagas para as visitas guiadas ao Cemitério Municipal (em curso divulgado pela Secretaria Municipal do Meio Ambiente) mostrou o interesse do público nos aspectos históricos e artísticos do local, bem como evidenciou suas potencialidades turísticas. A Assessoria de Comunicação da Câmara acompanhou uma dessas visitas.

“A Câmara esteve presente em praticamente todos os estágios da construção do Cemitério Municipal de Curitiba. As obras foram marcadas por demoras, interrupções, falta de mão-de-obra e dificuldades burocráticas, mas houve, sobretudo, uma resistência por parte da população que mesmo percebendo os perigos que envolviam o enterro dos mortos no chão e nas paredes das igrejas (os chamados enterros ad sanctos), preferia manter-se fiel a essa prática”, explicou Clarissa Grassi, pesquisadora que há dez anos se dedica a estudar o Cemitério Municipal (Cemitério São Francisco de Paula) sob aspectos históricos, arquitetônicos, simbólicos e sociais.

Suas pesquisas deram origem ao livro “Um olhar... A arte no Silêncio”, que foi lançado em 2006, por ocasião dos 160 anos do cemitério. A obra contém fotos e explicações sobre 54 esculturas e túmulos, com dados a respeito da simbologia das obras e, em alguns casos, sobre a história pessoal e familiar que contextualiza as imagens tumulares. “A partir do século XIX, os chamados cemitérios secularizados são estruturados como simulacros de cidades e, aos poucos vão reunir obras de arte que buscavam perpetuar a imagem dos homenageados”, esclareceu Clarissa.

Para ela, a intensa procura por vagas para a visita guiada ao Cemitério Municipal revela que existe um público disposto a conhecer mais profundamente esses espaços, o que justificaria pensá-los numa perspectiva turística. ”No exterior o turismo cemiterial é comum e visto com naturalidade. Cemitérios como Père-Lachaise, em Paris, de la Recoleta, em Buenos Aires e o Monumental em Milão são pontos obrigatórios nos catálogos turísticos destas cidades”, esclareceu a pesquisadora. Ainda para ela, “o Cemitério São Francisco de Paula não possui a relevância histórica e arquitetônica dos cemitérios citados, mas ele guarda arte tumular suficiente para justificar a realização das visitas orientadas”.

Secularizados
Durante aproximadamente oito séculos vigorou a prática de se enterrar os mortos no chão das igrejas ou depositá-los nas paredes. Eram os chamados enterros ad sanctos, cujos resquícios ainda podem ser vistos abaixo do piso de algumas igrejas mais antigas. As epidemias dos séculos XVIII e XIX colocam a “hygiene” na pauta e certos costumes acabaram por cair em desuso, entre eles, os enterros em igrejas. A república marca a “era de ouro” dos cemitérios secularizados, isto é, desvinculados da administração da igreja católica. Essa separação permitiu que pessoas de orientações religiosas diferentes ocupassem livremente o local. Além disso, houve maior liberdade para a escolha das ornamentações tumulares. A configuração assumida pelos cemitérios naquele momento permanece até hoje: áreas cercadas ou muradas que abrigam os mortos e seus respectivos túmulos, jazigos, lápides, esculturas e todo o conjunto de elementos que viria a ser conhecido como arte tumular.

“O espaço funerário se tornou então um local delimitado, compondo-se de muros e portões, e cuidadosamente divididos em aléias ou quadras, de modo a facilitar a vigilância e o controle desses espaços. A circulação também é bem definida e visível, e cada sepultura conta com um número de identificação, além dos nomes e datas dos mortos, o que individualiza cada um dentro do conjunto. Os cemitérios passam a ter horários para abrir e fechar, e, portanto um rigoroso controle da relação entre vivos e mortos”, observou Renata de Souza Nogueira, em estudo sobre preservação de patrimônio.

A individualização do morto extrapola sua identificação e é celebrada por esculturas e peças arquitetônicas arrojadas, que também cumprem a função de expor o poder econômico das famílias no contexto da comunidade. A distribuição social dos vivos se reproduz na geografia do cemitério que concentra em determinadas regiões os túmulos e mausoléus monumentais dos ricos. O período que vai da proclamação da república até meados dos anos 1940 presenciou uma explosão de arte tumular no Brasil. Homens de posses como os barões da erva-mate e do café investiram pesado na construção de seus jazigos.

Políticos e militares também são fortes presenças nos túmulos do Cemitério Municipal. Muitos foram, em algum momento e suas vidas, vinculados à Câmara, como por exemplo o Barão do Serro Azul, Vicente Machado, Eufrásio Correia e o doutor João Pedrosa, que além de presidente da Câmara Municipal, foi também o primeiro paranaense a ocupar o cargo de presidente da Província. Além de incentivar o ensino público, ele foi o responsável pelo avanço final das obras do cemitério. Seu túmulo vertical contrabalança o peso do monolito com a leveza do anjo com a mão erguida (infelizmente vandalizado).

Mausoléus Monumentais
A tipologia dos túmulos é variada e sua descrição pode ser encontrada no Boletim da Casa Romário Martins dedicado ao Cemitério Municipal (Fundação Cultural de Curitiba, 1995), de autoria da professora Cassiana Lacerda. A classificação abrange túmulos verticais (monólitos e estelas), túmulos horizontais com monólito ou capela vertical, capelas votivas e capelas de família. Para a professora Cassiana Lacerda, essas capelas-mausoléus são “certamente os jazigos que chamam mais atenção no cemitério São Francisco de Paula e lhe imprimem características próprias”. São construções altas (algumas com mais de dez metros), robustas (a maior possui 80 m²) repletas de adornos, volutas, cornijas duplas, balaustradas com gárgulas e outros elementos românticos ou góticos.

Quando a tendência estética se orientou pelas escolas art déco e art nouveau, esses mausoléus monumentais ganharam características desses estilos e alguns exemplares são dignos de nota, como é o caso do jazigo da família Leão de Macedo “construído em forma de tronco de pirâmide com característica maias, foi concebido no espírito art dèco. A portada de ferro batido é trabalhada com elementos naturalistas imitando tochas ardendo. Entre os elementos da decoração destacam-se as cabeças de leão, como as existentes no palacete Leão Júnior e no frontão, duas tochas unidas por uma guirlanda, destacando-se no meio a grega. Os frisos decorativos exploram elementos geométricos”.

Existem também capelas em estilo greco-romano, monópteros (como o jazigo de João Gualberto) e até mausoléus com influências greco-egípcias como a pirâmide situada nas proximidades do muro lateral direito. Obrigatório lembrar os exclusivos túmulos ornados com elementos visuais paranistas (família Stenghel e o monumento a André de Barros – com busto do homenageado feito pelo escultor João Turin).

Num dos últimos momentos da visita guiada pela pesquisadora Clarissa Grassi, o visitante é conduzido a uma estreita viela que separa as quadras que ostentam mausoléus monumentais do muro lateral esquerdo – ela é sombreada por densa arborização que acentua o clima melancólico inerente ao local. Muitos desses mausoléus combinam monumentalidade e abandono: musgos com mais de 100 anos se espraiam por túmulos que um dia representaram o poder econômico e político no Paraná.

Anjos
Além dessas construções, o cemitério é pontuado por um verdadeiro exército de estátuas em mármore, bronze e granito nas mais diversas representações, significados e simbologias, algumas contraditoriamente brutais em sua delicadeza. A pesquisadora Clarissa Grassi destacou no passeio guiado que “entre as estátuas encontramos anjos dóceis, anjos do apocalipse, pranteadoras, imagens religiosas, cívicas e até mesmo eróticas”.

Seu objetivo é catalogar os túmulos mais relevantes e comentá-los com maior detalhamento em um próximo livro. Por enquanto, ela está gratificada pelo interesse da população nas atividades que promove. “Acredito que o Cemitério Municipal possui um forte potencial turístico e pode garantir um fluxo contínuo de visitantes. Sem falar no túmulo de Maria Bueno, de longe o mais visitado desse espaço”, lembrou Clarissa.

Referências Bibliográficas
“A vida e a morte na história de Curitiba”, da jornalista Michelle Stival, integrante da equipe da Assessoria de Comunicação da Câmara Municipal de Curitiba. Matéria publicada em 15/07/2010, na página da instituição na internet. (Link aqui)

“Cemitério Municipal São Francisco de Paula: Monumento e Documento”, texto de Cassiana Carollo de Lacerda publicado no Boletim Informativo da Casa Romário Martins (Volume XXI, número 104). Edição da Fundação Cultural de Curitiba em abril de 1995.


“A Arte Cemiterial como Fator de Distinção e Eternização do Status Social no Cemitério São Francisco de Paula”, artigo de Sara Jane Santos, publicado na revista “O Mosaico” (n. 7, p. 31-45), editada pela Faculdade de Artes do Paraná em 2012.

“Arte Funerária no Brasil: Contribuições para a Historiografia da Arte Brasileira”, pesquisa apresentada por Maria Elizia Borges durante o XXII Colóquio Brasileiro de História da Arte, em 2002, na Universidade Federal de Goiás (UFG).

“Descobrindo o art-dèco no Cemitério São João Batista”, pesquisa apresentada por Renata de Souza Nogueira no 9º Seminário Docomomo Brasil, em 2011. 

“Arte e Sociedade nos Cemitérios Brasileiros”, livro de Clarival do Prado Valladares. Publicado pelo MEC em 1972.