“Curitiba Ontem e Hoje”: as histórias e as memórias por trás das fotos

por Fernanda Foggiato e Michelle Stival da Rocha — publicado 22/03/2016 05h10, última modificação 19/05/2022 13h48
“Curitiba Ontem e Hoje”: as histórias e as memórias por trás das fotos

Susan Sontag: “Toda foto testemunha a dissolução implacável do tempo”. (Fotos: Acervo Cid Destefani/Arte: Aline Bonn/CMC)

“Tirar uma foto é participar da mortalidade, da vulnerabilidade e da mutabilidade de outra pessoa ou coisa. Justamente por cortar uma fatia desse momento e congelá-la, toda foto testemunha a dissolução implacável do tempo.” A frase, da escritora e ativista Susan Sontag, resume a essência de uma exposição fotográfica que será inaugurada nesta quarta-feira (23) nas galerias do Palácio Rio Branco, na Câmara Municipal. Os retratos da mostra “Curitiba Ontem e Hoje” permitem ao espectador perceber nítidas mudanças decorrentes da decomposição de cenários e da ascensão de outros.

A exposição traz imagens a partir de 1855, do Centro e do Setor Histórico de Curitiba. É o caso da rua XV de Novembro, cujo nome remete à Proclamação da República, em 1889. Da lama e cavalos, no século 19 (foto 2), ao asfalto e carros, em 1945 (foto 3), até o calçadão, em 1972 (foto 4). Era lá também que o curitibano “pulava Carnaval”, como mostra retrato de 1902 (foto 5). Das sacadas, as pessoas assistiam ao corso – desfile de carroças com alegorias, que antecederam os blocos carnavalescos. Com o calçadão, a folia foi transferida para a rua Marechal Deodoro.

“A rua XV de Novembro já foi a ágora curitibana.” A comparação ao local das antigas cidades gregas, onde o povo se reunia, é do arquiteto Abrão Assad, responsável pelo projeto do calçadão, implantado em 1972, na gestão do prefeito Jaime Lerner. Com o petit-pavé e o mobiliário urbano, foi a primeira grande via pública para pedestres inaugurada no Brasil. O trecho foi apelidado de rua das Flores, nome que a via teve entre 1850 e 1880, quando passou a ser a rua da Imperatriz – após a visita de Dom Pedro II, de sua esposa, Dona Teresa Cristina, e da comitiva imperial.

“O problema da XV de novembro era o seguinte: a cidade tinha 600 mil habitantes e um Centro movimentado, com trânsito intenso. Foi uma das primeiras obras que o Lerner definiu. Eu fiz o teste... Fiz o trajeto entre as praças Osório e Santos Andrade mais rápido a pé que de carro. O comércio já estava em decadência, agonizando”, explica Assad. “Mas não era simplesmente fechar a rua. Observei que, apesar de ser o coração de Curitiba, a XV não tinha expressão. Os comerciantes fechavam os prédios antigos com tapumes de alumínio. Imaginei então um cenário, com floreiras, quiosques, luminárias e árvores, e retomamos o nome de rua das Flores.”

Mas o projeto não foi bem recebido pelos comerciantes. Segundo o arquiteto, a ideia gerou desconfiança: “Quem garantia que haveria melhorias nos negócios? Na imprensa, havia duas vertentes de opiniões”. O primeiro trecho, entre as ruas Monsenhor Celso e Barão do Rio Branco, foi revitalizado durante um fim de semana, em maio de 1972. “Eram seis da tarde de uma sexta-feira [dia 19], e o Ricardo Tacla percebeu que a coisa estava começando. Ele foi ao escritório de um advogado para tentar impedir as obras, judicialmente. O dono da Capital das Modas me viu com balde de tinta amarela, com a qual indicaria o local onde ficariam as árvores, e me proibiu de plantar uma na frente de sua loja”, lembra Assad.

O primeiro trecho foi concluído em 72 horas. “Por que deu certo? Havia essa briga e todo mundo correu para o Centro ver o que estava acontecendo. A população aprovou, viu que o calçadão era o local próprio para fazer compras e se reunir. O comércio sentiu a diferença e havia, daí, pressão para que se ampliasse a revitalização”, completa o arquiteto responsável pelo projeto.

No fim de semana seguinte, dia 27 de maio, um sábado, a prefeitura realizou uma sessão de pintura ao ar livre no calçadão da rua XV. “A paz de volta na antiga Rua das Flores”, publicou, na edição de domingo, o jornal Diário do Paraná. “Um velhinho pondera: 'Por aqui passaram bondes, ônibus, carros barulhentos, houve até desastres... agora as crianças sentam no chão, sorriem, pintam o sete e o pessoal aglomera-se para vê-las'”, dizia a reportagem.

Do Senadinho à Boca Maldita
Entre a Monsenhor Celso e a Marechal Floriano, a rua XV de Novembro tinha um ponto de encontro de jornalistas, intelectuais e políticos, em frente ao Café Alvorado, conhecido como Alvoradinha. Era o Senadinho (foto 8), que entre as décadas de 1920 e 1950 representou para Curitiba o que hoje é a Boca Maldita.

Também funcionou naquela região, de 1923 a 1951, a redação da Gazeta do Povo. “Quem passava pela Rua XV na década de 20 nunca voltava desinformado para casa. É que ali, entre a Avenida Marechal Floriano e a Rua Monsenhor Celso, na porta da Gazeta do Povo, notícias de última hora eram coladas em uma pedra de mármore escuro, que logo foi batizada de Pedra da Gazeta. Eram notas curtas, manuscritas em aparas de papel aproveitado das próprias bobinas rotoplanas do jornal”, publicou o jornal, em 2009.

Já a Boca Maldita, na avenida Luiz Xavier, surgiu oficialmente em 1956. Para o jornalista Luiz Geraldo Mazza, o local “não tem a participação que tinha, se limita a um jantar de fim de ano”. “Era a 'República do Xerox'. Apareciam documentos e informações sobre processos, em plena ditadura. Hoje não tem mais a mesma expressão”, avalia. “Houve um tempo que a Boca Maldita era quase uma passarela de políticos e que jornalistas batiam ponto lá, para conseguir informações. Hoje não, é lugar tomado de maledicência”, defende.

Centro: de chique a trash
“A vida girava em torno do Centro”, afirma o historiador Kallil Mattar Assad, primeiro-secretário do Instituto Histórico e Geográfico do Paraná (IHGPR). “Em 1668, foi instaurado o pelourinho, o Marco Zero [na antiga praça da Matriz, hoje a Tiradentes], e a cidade se desenvolveu a partir dali. Em 1693, houve a instalação da Vila [de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais] e a primeira eleição para a Câmara de Vereadores. Evidentemente que antes disso havia choupanas, cabanas. A primeira tentativa de se formar um núcleo urbano é controversa. Uns dizem que teria sido no Bacacheri. Outros, no Atuba. Eram aventureiros que vieram para cá de Paranaguá”, explica.

“Na visita de Dom Pedro II a Curitiba [em 1880], ele inaugurou a Santa Casa de Misericórdia [na praça Rui Barbosa, o primeiro hospital da cidade]. O imperador elogiou a construção, mas registrou que era longe do Centro”, cita o historiador.  Saad diz que os bairros de Curitiba começaram a se desenvolver a partir dos anos 1950, com obras de saneamento e urbanização. “Uma curiosidade é que o mito do curitibano fechado tem forte raiz nas colônias de determinadas etnias, os atuais bairros, que tinham seu idioma e costumes próprios.”

O historiador destaca a Cinelândia de Curitiba como um símbolo da vida cultural do curitibano do século passado, entre as décadas de 1920 e 1960. O complexo de cinemas abrangia a rua XV de Novembro e a avenida Luiz Xavier, passando pelas praças Osório e Zacarias. O Palácio Avenida, por exemplo, era o Cinema Avenida, o primeiro prédio da cidade construído especialmente para a projeção de filmes, inaugurado em 1929. “A Cinelândia surgiu a partir do modelo europeu de urbanização dos primeiros urbanistas, que pensavam Curitiba como uma Paris.”

Exemplo da vida social do curitibano era o Cine Luz, na praça Zacarias.  Construído na 1939, reunia moças e rapazes nas “matinés”. O problema era quando chovia forte: a região alagava. Imagem da exposição (foto 10), de 11 de fevereiro de 1947, registra um desses alagamentos. No dia seguinte, publicou o Diário do Paraná: “Uma verdadeira bomba d' água. As crianças fizeram das vias públicas, em alguns lugares, verdadeira piscina. (…) Na Praça Ozório e na Praça Zacarias, a enchente assumiu proporções até agora nunca vistas. Vários automóveis, particulares e de aluguel, ficaram quase totalmente mergulhados sob as águas. (…) A banca de jornais da Praça Zacarias flutuou – consta – até próximo à Rua Barão do Rio Branco, pela Rua Marechal Deodoro”.

Mas não foi pelas enchentes que o Cine Luz sucumbiu, e sim pelas chamas. Ele foi destruído em um incêndio, em 1960. “O fogo principiou no palco do cinema, que estava sofrendo reformas em suas instalações elétricas. As chamas foram pressentidas pouco depois das 18 horas (…). Duas horas depois, o prédio encontrava-se totalmente destruído. Foram salvos apenas alguns móveis. Os prejuízos são calculados em mais de 10 milhões de cruzeiros”, publicou o Última Hora, na edição de 27 de abril. Segundo o jornal, um sargento sofreu ferimentos na cabeça, “atingido por uma telha”.

O fim do Cine Luz também foi registrado pelo Correio do Paraná, em 1º de janeiro de 1961, na retrospectiva do ano anterior – intitulada “Rastro de sangue”. “Em abril ocorreu o maior incêndio do ano. O fogo poderia ter causado milhares de mortes um pouco mais tarde, quando iria haver a primeira sessão cinematográfica da noite”, afirmou o jornal. Também fazia parte da Cinelândia o Cine Vitória, na rua XV, que até a Segunda Guerra Mundial havia se chamado Cine Imperial e depois mudaria de nome para Ritz (foto 12).

“O ícone da depreciação do Centro é justamente a decadência do cinema, a partir dos anos 1970. Começou um sucateamento, com o surgimento do VHS e os filmes na televisão. Cinemas que exibiram grandes filmes passaram a passar pornografia para sobreviver. Também nessa década aumentou a mendicância depois da Geada Negra, em 1975. Depois de o curitibano brincar na neve, no 17 de julho, o Norte amanheceu de luto”, argumenta o historiador Kallil Saad. “Muita gente começou a vir para Curitiba sem a garantia de nada. O Largo da Ordem, na década de 1980, já era chamado de Largo da Desordem. Assim, houve uma inversão de moradia. De chique, morar no Centro passou para 'trash'. Com locais desocupados e o comércio fechado à noite, claro que atraiu criminalidade, tráfico, prostituição.”

Século 20: moda e costumes
“Nenhum rapaz entrava no cinema se não estivesse de paletó e gravata. Era barrado na porta”, comenta o modelista Eleuther Alencar dos Guimarães Vianna, que há 50 anos tem vestido a alta sociedade curitibana. “Quando eu cheguei aqui, a moda era uma coisa muito mais estruturada, respeitada. Curitiba sempre primou pelo bom gosto e até pela forma, às vezes um pouco receosa, de se vestir. Hoje não tem mais esse protocolo do vestir para o homem e para a mulher”, constata.

Nascido em Paranaguá, em 1926, Eleuther mudou-se para o Rio de Janeiro na década de 1950 e passou a trabalhar em Curitiba a partir de 1963. Sobrinho-neto de José de Alencar, exibe em seu atelier uma foto em tamanho real da avó, irmã do escritor, “a dona Babu”, além de vestidos de alta-costura e móveis do início do século passado, todos em madeira de lei entalhada, herdados dos antepassados.

Ele lembra que, assim como nas grandes capitais do Brasil, a moda em Curitiba sempre foi ditada por Paris e Milão e que, antes da popularização da TV, chegava por meio dos figurinos (revistas). “Mas antigamente era muito difícil encontrar os figurinos europeus nas livrarias e nas bancas, porque eram caríssimos. Os exemplares ficavam nos ateliês de alta-costura”, revela, lembrando que acompanhava a mãe quando ela vinha para Curitiba encomendar roupas. “Dona Clotilde Rocha tinha um atelier na travessa Oliveira Belo em 1930, 1940, e ela costurava para senhoras da sociedade curitibana. Depois foi a madame Furiet [pronuncia-se Furriê], uma francesa que atendia na praça Carlos Gomes.”

“Em 1908, meu pai usava meio-fraque para trabalhar, cartola, bengala e luva de pelica. O guarda-roupa dele, quando faleceu em 1951, estava todo organizado com essas peças. Usavam bengala não por necessidade, mas por elegância, as polainas sobre os sapatos de inverno. Minha mãe ainda usava espartilho, umas cintas em que as presilhas seguravam as meias. Ela não atravessava a rua para visitar uma parente se não estivesse enchapelada. Elas não saíam sem chapéu na rua porque era um sinal de relaxamento e de falta de educação. Isso na década de 1950. Uma mulher andar sem meia, por exemplo, era uma coisa escandalosa, comprometia a dignidade, ainda nos anos 60”, conta o estilista.

Saudoso, Vianna fala sobre os costumes do curitibano até a chegada década de 1970. “Na rua XV, ficavam as melhores lojas da cidade, as de tecido, as joalherias, a peleteria Polar, a casa Culpi de pratarias e cristais, muitas de antigas famílias alemãs que vieram para cá e se estabeleceram. O comércio chique ficava no Centro, não existia shopping e nem galerias.”

A XV, quando ainda passavam carros, também era o cenário para a paquera entre os jovens: o chamado “footing”. “Nesse 'footing', a rapaziada ficava na calçada em pé vendo as moças passarem na rua, sempre acompanhadas de alguém da família ou babás. A paquera era muito limitada, não havia essa paquera aberta de hoje, nenhuma menina saía na rua sozinha. Uma moça na rua sozinha, a rapaziada já ficava desconfiada”, recorda o modelista.

Ele lembra ainda das confeitarias, dos clubes com os chás dançantes e do cinema. “As matinês eram um sucesso, ninguém perdia. Às duas horas da tarde eu estava seco para ir ao cinema, tinha matiné quase todos os dias.” Os bailes dos clubes eram disputados entre os jovens: “A primeira sociedade estruturada foi o Clube Curitibano, fundada pelo Barão do Serro Azul. A sede cultural ficava na rua Barão do Rio Branco, esquina com a XV de Novembro [onde está a Cohab]. Lá no Água Verde era a sede campestre”, lembra.

Por Fernanda Foggiato e Michelle Stival da Rocha, jornalistas da Diretoria de Comunicação da Câmara Municipal de Curitiba.


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