Especial 329 anos: a proibição aos jogos de azar e um recorte da desigualdade

por Fernanda Foggiato | Revisão: Vanusa Paiva — publicado 30/03/2022 08h30, última modificação 31/10/2022 18h48
Série do Nossa Memória em homenagem ao aniversário de fundação da Câmara de Curitiba e da cidade resgata “causos” sobre o “antigo normal”.
Especial 329 anos: a proibição aos jogos de azar e um recorte da desigualdade

Com sanções desiguais à pessoa escravizada, as Posturas de 1829 vedavam os jogos de cartas e de dardos. (Foto: Rodrigo Fonseca/CMC)

Um vício “que arrasta para todo o gênero de desordens não só aos incautos filhos famílias, os escravos, mas ainda a muitos cidadãos, que não poucas vezes têm arruinado seus patrimônios, deixando suas famílias expostas à miséria”. Assim o primeiro Código de Posturas consolidado pela Câmara Municipal de Curitiba (CMC), em 1829, definia os jogos de azar.

Além dos embates sobre os “pardieiros”, do plantio da erva-mate e do desarmamento, essa foi outra discussão do “antigo normal”, travada pelos vereadores na organização das primeiras posturas, lá no século 19. A Câmara Municipal debateu por mais de uma sessão como seriam punidos os moradores flagrados em jogos de cartas ou dardos (as corridas de cavalos, por outro lado, eram aceitas).

Um dos vereadores, na discussão, usou como argumento até as Ordenações Filipinas, que já regulamentavam – e vedavam – a jogatina. Outros defendiam uma legislação mais clara. O presidente da Câmara, Lourenço Pinto de Sá Ribas, por exemplo, argumentou que as Ordenações eram muito duras e deixavam os abusos “totalmente impunes”, dando lugar ao crime.

O presidente também apontou que a lei chamada de Regimento das Câmaras Municipais, de 1828, assegurava aos vereadores o direito de “prover o bem da segurança e a tranquilidade do Município”. Pelo Livro V das Ordenações Filipinas, o jogo de cartas, naquela época, seria punido com a prisão, o pagamento de multa ou o envio à África.

Açoite, palmatória ou prisão?
Houve ainda um debate paralelo sobre o castigo à população escravizada – que, se flagrada em rodas de jogos, seria punida com 25 açoites, além de um tempo atrás das grades. Os vereadores Antonio Antunes e Joaquim Magalhães achavam que os “escravos briosos”, na primeira contravenção, deveriam apenas ser advertidos.

Já para Ribas, o presidente daquele período, a cadeia punia somente “seus senhores”. Tentando amenizar a discussão, João Mendes Maxado propôs uma emenda para que os escravos com menos de 17 anos fossem castigados “apenas” com a palmatória (aprovada por 5 votos a 2, mas depois suprimida do texto).

O artigo foi editado com a proibição aos “jogos de azares” com cartas e dardos, prevendo a aplicação de multa e até oito dias atrás das grades a quem promovesse ou participasse da jogatina, de dia ou à noite. Foram mantidos os 25 açoites às pessoas escravizadas.

A versão final, após as alterações pelo Conselho-Geral da Província de São Paulo, em 1831, retirou o juízo de valor sobre o vício em jogos de azar. Também estabeleceu o valor da multa, entre 4 e 8 mil réis, e retirou a pena sob o açoite, devolvendo a responsabilidade pelo castigo às pessoas escravizadas a seus “proprietários”.

Punições desiguais
Apesar do Regimento das Câmaras Municipais não delegar aos vereadores a responsabilidade de legislar sobre as pessoas escravizadas, outras punições ao descumprimento de regras do “antigo normal” reforçam essa desigualdade. São exemplos, no Código de Posturas de 1829, as proibições ao porte de armas e aos batuques e fandangos.

Aos “indivíduos livres”, por exemplo, o porte de “armas de defesa [...] como faca de ponta, pistolas, bacamartes”, durante o dia ou à noite, deveria ser punido com multa de 2 mil réis ou, para quem não pudesse pagar, com seis 6 dias de prisão. No caso da pessoa escravizada, a sanção estipulada no Código de Posturas era a da perda da arma e o castigo público com 20 açoites.

A exceção (quem poderia portar armas) eram “as pessoas de qualidade isentas de toda suspeita que em ato de viagem trouxerem pistolas nos coldres ou outras armas necessárias para se defenderem de qualquer agressão de escravos e salteadores”. Conforme levantamento de 1826, a vila de Curitiba e respectivas freguesias, como as de São José e a de Campo Largo, contavam com 12.514 habitantes, sendo 10.936 pessoas livres e 1.941 escravizadas.

Especial 329 anos
O Nossa Memória, projeto da Diretoria de Comunicação Social da CMC, resgata, ao longo da semana em que o Poder Legislativo e a cidade de Curitiba completam o 329º aniversário de fundação, alguns “causos” antigos. São histórias curiosas, que mostram um pouco do “antigo normal”, a partir das posturas determinadas pelos ouvidores-gerais e os vereadores. O período da pesquisa começa em 1721, com os provimentos do primeiro ouvidor-geral da capitania, o português Raphael Pires Pardinho. A vinda dele à vila é considerada o quarto ato da fundação de Curitiba.

O recorte passa pelas correições de outros ouvidores; segue pelas primeiras deliberações dos vereadores, ainda no século 18; e vai até 1831, quando o Conselho-Geral da Província de São Paulo aprovou a versão final daquele que pode ser considerado o primeiro Código de Posturas da cidade, aprovado pela Câmara Municipal em 1829. 

** Confira aqui as referências da terceira parte da série especial.

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