A vida e a morte na história de Curitiba

por Michelle Stival da Rocha — publicado 24/04/2020 23h21, última modificação 24/04/2020 23h21
 A vida e a morte na história de Curitiba

Foto: Arquivo CMC

Em 30 de dezembro de 1848, a Câmara convocou clérigos para discutir sobre a possibilidade de construir “catacumbas na parede do corredor da Igreja Matriz para servirem enquanto não houver cemitério”. Este é o registro mais antigo da Casa, encontrado nas atas, relacionado às formas de sepultamento na história da cidade. Nas entrelinhas deste relato de 1848 está o fato da história dos cemitérios em Curitiba estar relacionada não só à morte, mas também à vida. De um lado estava o costume de se enterrar os mortos em igrejas, no início da colonização até meados do século XIX. Do outro, o problema de saúde pública que isto trazia, com o alastramento de pestes e doenças.

Os cemitérios passaram a existir em Curitiba de forma tímida, assim como o povoamento da então chamada Vila de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais. Neste contexto, a Câmara teve um papel decisivo na deliberação das mudanças relativas ao assunto. De acordo com a prefeitura, datam do início do século XVIII os primeiros sepultamentos realizados no pátio da Igreja Matriz - demolida em 1876 para ser construída, ao lado, a Catedral de hoje.

Ainda no século XIX, era uma prática comum, em um país regido pelos ritos católicos, o uso das áreas das igrejas para enterrar os mortos. No entanto, a possibilidade de se construir catacumbas nas paredes da Igreja Matriz, em 1848, já era reprovada pelo império, por uma questão de preservação da higiene e saúde da população. A lei de 1º de outubro de 1828, de Dom Pedro I, considerada a primeira lei orgânica dos municípios, determinava que as Câmaras construíssem e administrassem os cemitérios públicos em harmonia com o poder eclesiástico, para evitar o alastramento de epidemias como a da varíola, no início do século XIX. Porém, a iniciativa de não mais se enterrar os mortos nas igrejas e seus pátios no Brasil era um grande desafio, já que a crença religiosa rezava que, quanto mais perto do altar a pessoa era enterrada, mais próxima de Deus sua alma estaria. Por muitos anos, em todo o país, a lei foi ignorada, continuando a se respeitar os costumes da época.

Aparece nos registros da Câmara uma decisão de 13 de janeiro de 1851, onde os parlamentares resolvem construir um cemitério, nomeando uma comissão de “camaristas” (vereadores) para administrar a obra e adquirindo 400 carros de pedra. As atas contam que, em agosto, a obra ainda não tinha sido iniciada e os vereadores decidiram então usar as pedras para o calçamento de ruas.

Finalmente, em 1º de dezembro de 1854, foi lançada a pedra fundamental  para a construção do cemitério mais antigo de Curitiba, o cemitério São Francisco de Paula.

Em 30 de setembro de 1857, a Câmara recebe requerimento “dos Protestantes existentes na cidade pedindo 50 braças quadradas no 'alto além da Glória' – para 'edeficarem' um Cemitério”. O terreno foi concedido “isento de pagamento de foro”. Tratava-se do cemitério Luterano de Curitiba, que fica na Travessa Luthero. Na época, os protestantes, a maioria imigrantes, só poderiam enterrar seus familiares no Cemitério Municipal se fossem convertidos ao catolicismo e, por não concordarem com isto, resolveram reivindicar terras para seguirem seus próprios ritos.

Organização
Com o crescimento de Curitiba, uma série de outros cemitérios foram sendo construídos.  Para organizar este trabalho, um registro da Câmara, de maio de 1928, relata que os cemitérios existentes na capital ficavam, a partir dali, sujeitos às mesmas leis e regulamentos do Cemitério Municipal, passando a ser administrados pelo município. A lei foi sancionada pelo prefeito Eurides Cunha.

Em 1974, foi aprovada a lei 5.000, que cria o Serviço Funerário Municipal, destinado às famílias de Curitiba que dele desejarem se utilizar. Este serviço era padronizado e possuía marcenaria e transporte próprios. Hoje, o serviço é terceirizado e regido pela lei 13.205 de 2002, que diz que o Serviço Funerário no Município de Curitiba deve ser realizado pela iniciativa privada através de concessão mediante licitação. A lei foi regulamentada anos depois, em 2009, pelo decreto 699, assinado pelo então prefeito Beto Richa. Agora, o processo licitatório para a definição das empresas está em andamento.

Cremação
A cremação de cadáveres veio em 1983, com a lei 6.419, que instituiu a prática. Em complemento a isto, está em trâmite na Câmara atualmente um projeto de autoria do vereador Mario Celso Cunha (PSB) que autoriza a prefeitura a criar um Crematório Municipal para atender à população. A utilização gratuita ficaria condicionada à doação dos órgãos para transplantes. O vereador considera em sua proposta questões como a carência existente no banco de doadores, a poluição gerada pelos cemitérios que compromete a salubridade do lençol freático e a ocupação de grandes áreas pelos cemitérios.

Em vigor
Os registros mais recentes sobre a organização dos sepultamentos são as leis 11.365, de 2005, e 13.205, de 2009. A de 2005 determina que parques e cemitérios não poderão cobrar preços superiores a 30% do preço do mercado comum em serviços funerários. Já a de 2009, de autoria do vereador Paulo Frote (PSDB), define que os caixões devem ser impermeabilizados internamente para impedir a contaminação do lençol freático pelo necrochorume (líquido putrefato resultante da decomposição dos corpos). 

Diante de todo este contexto, pode-se considerar que hoje a capital tem um dos sistemas mais organizados de sepultamento do país. Além de tabelas que regulam os preços dos serviços funerários para evitar a exploração comercial descontrolada, há um esquema de rodízio que impede o assédio às famílias na hora de decidir qual empresa contratar. Esta evolução se deu a partir dos erros e acertos observados nestes mais de 300 anos de vida e morte na história da cidade.


Referências Bibliográficas: As informações históricas contidas nesta matéria foram retiradas dos manuscritos existentes na Câmara; dos Boletins do Archivo Municipal de Curitiba (B.A.M.C.), de Francisco Negrão e do livro 300 Anos - Câmara Municipal de Curitiba 1693-1993. As leis coletadas a partir de 1948 foram pesquisadas no sistema SPL do site da Câmara.


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Em 1848, a Câmara convocou clérigos para discutir sobre a possibilidade de construir catacumbas na parede do corredor da Igreja Matriz, que ficava ao lado da atual Catedral. (Foto: Acervo Casa da Memória)